Nunca fomos tão modernos

foto Marcelo Kertész

Edifício Oceania, Salvador

"Um homem que quisesse sempre sentir historicamente seria semelhante ao que se obrigasse abster-se de dormir... Portanto: é possível viver quase sem lembrança, sim, e viver feliz assim, como mostra o animal; mas é absolutamente impossível viver, em geral, sem esquecimento." *

F. Nietzsche


O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Salvador (PDDU), que deve seguir para a votação na Câmara Municipal nas próximas semanas, estabeleceu dentro das suas Áreas de Proteção Cultural e Paisagística (APCP) um conjunto de 46 edificações enquadradas como 'monumentos da arquitetura civil moderna'. Segundo o texto da lei as APCP são "áreas que possuem elementos de paisagem natural ou construída, que configuram referencial cênico ou simbólico significativo para a vida e estrutura urbanas, vinculadas à imagem da Cidade". O que significa que fica proibido a substituição das edificações catalogadas, salvo reformas sem ampliação, que mantenham a volumetria e a fachada dos imóveis, ou obras destinadas à manutenção e segurança.

A listagem dos edifícios baseia-se no levantamento feito pelo núcleo baiano (Faculdade de Arquitetura/UFBa) da organização internacional Do.Co.Mo.Mo - que existe em nome da conservação do patrimônio do movimento moderno - e inclui, no caso de Salvador, construções compreendidas entre 1930 (Elevador Lacerda) e 1968 (Banco do Brasil). Na sua quase totalidade, edifícios erguidos na franja da cidade voltada para a Baía de Todos os Santos, que vai do bairro da Barra à península da Ribeira. Faixa onde Salvador até o final dos anos 60, de fato, importava. Na sua centralidade, na sua urbanidade. A inclusão dessas construções da arquitetura moderna no rol dos monumentos sujeitos a proteção da lei nos permite algumas reflexões.


Imagem Pública

Para além de uma crítica dos critérios que levaram o Do.Co.Mo.Mo/Bahia a selecionar estes 46 prédios - e aos artífices do PDDU a incorporá-los no texto -, interessa aqui, dentro dos contornos desse blog, a questão da imagem da cidade. A expressão, quase como um conceito tácito na minuta do Plano Diretor de Salvador, é colocada sem maiores definições. Que imagem da cidade? Do que se fala? Do conceito behaviorista de Kevin Lynch e seus mapas mentais e a boa legibilidade de uma cidade? Ou da idéia de imagem pública, numa acepção mais próxima das práticas de marketing?

O clássico estudo de Lynch não parece nos ajudar muito nesses dias de multicentralidades, pastiche arquitetônico, velocidades diversas e próteses do corpo - potencializadas pelas novas tecnologias da informação e comunicação - que subvertem, além do tempo e espaço, a visualidade linear e em perspectiva. A percepção da cidade dilui-se e as experiências individuais, salvo alguns eventos, já não encontram o respaldo de uma fluição coletiva.

A imagem da cidade como 'imagem pública' pode ter o seu suporte na paisagem urbana, natural e construída, mas é complementada e ativada com discursos de outra ordem, inclusive de natureza intangível, como as sensações de segurança ou medo, de aconchego ou estranheza, de alegria ou melancolia etc. Pode ser construída, ao longo do tempo, por um imaginário que também se apóia em narrativas artísticas, como literatura e cinema, caso de New York e Paris, ou ainda, rapidamente elaborada em práticas com fortes doses publicitárias, como os casos de sucesso do chamado planejamento estratégico, onde Barcelona segue como paradigma.

Em geral, no entanto,o senso comum leva o conceito de imagem da cidade para um rebatimento quase imediato a um outro conceito difuso: o de identidade. É quase uma doxa nos dias que correm. Invocar a identidade parece ser uma espécie de autodefesa à incapacidade atual de se lidar com os acelerados processos de compressão do tempo e espaço que estão em curso, bem como com as suas consequências: hibridismos, desterritorialização, difusão. É um estranho e perigoso consenso, naturalizado, onde campos distintos e, por vezes, antagônicos da sociedade entoam a mesma cantilena.


Outras memórias

O levantamento dos prédios modernos, endossado pela minuta do PDDU, não constitui, necessariamente, e no seu conjunto, uma imagem que seja "referencial cênico ou simbólico significativo" para a Salvador contemporânea, como estabelece a lei para as APCP. Ressalva talvez aos prédios da área do bairro do Comércio, zona moderna da cidade por excelência. Ainda assim não arriscaria dizer que essa é uma percepção coletiva.

Algumas edificações de uso público como o Elevador Lacerda, o Estádio Otávio Mangabeira e o Teatro Castro Alves, por exemplo, permanecem vivos, mantendo a sua funcionalidade, suas dimensões simbólicas e, até mesmo, existindo como monumentos isolados. Os outros exemplares, na imensa maioria, mesmo os que têm localização privilegiada, como o edifício Oceania e o Hotel da Bahia, seguem sendo um desfrute para um grupo seleto, que conhece e entende a linguagem da arquitetura.

O fato da existência de uma enunciação vinda de um saber especializado, que cataloga e apresenta uma leitura possível da cidade, logo uma crítica, pode, no entanto, ampliar positivamente as possibilidades do olhar e dos discursos sobre Salvador. Hoje ele encontra-se monofônico, reificado nas práticas do campo de um turismo que folcloriza, mesmo para os que aqui habitam.

Em alguns lugares e em outros tempos, a amnésia. Caso da reação à arquitetura moderna da alemanha nazista e da itália fascista. No caso de Salvador, o acionamento de outras memórias pode funcionar como uma resistência ao lugar de silêncio em que têm permanecido os discursos das elites intelectuais. Podem ganhar força caso saibam dialogar também com as diversas dimensões midiáticas. Hoje, imprescindíveis.

Que todos esses edifícios da arquitetura moderna em Salvador não tenham sido capaz de reivindicar outras imagens para a cidade nessas últimas décadas, é só a constatação de que a escrita arquitetônica divide com outros textos, e já há algum tempo, as possibilidades de semantização dos lugares.

Outro ângulo, mais lacônico, sobretudo aos arquitetos, é o da qualidade ainda não superada, ou mesmo igualada, da produção arquitetônica do período modernista e dos seus mestres de reputação internacional. Uma fratura no tempo para uma jovem nação, onde Niemeyer, Brasília, Lúcio Costa, JK, arquitetura moderna, continuam povoando, como fantasmas, as possibilidades simbólicas de um eterno país do futuro.

Ainda que Salvador não tenha estado na linha de frente desse debate, herdou, como todas as metrópoles do país, esses rastros. A eles recorremos sempre que queremos um rumo. Talvez para nós, de fato, como ainda reclama Habermas para a contemporaneidade, temos uma modernidade inconclusa.


Localize-se (geotags)
Edifício Oceania, 1942
Instituto do Cacau, 1936
Teatro Castro Alves, 1957
Edifício Petrobrás, 1961
Cine Roma, 1948

Direto no Google Earth
Edifício Oceania

Links
Plano Diretor de Salvador
Do.Co.Mo.Mo Internacional


* Nietzsche, F. Segunda Consideração Intempestiva. Da utilidade e desvantagem da história para a vida.

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